sexta-feira, julho 08, 2005

ENJOOS DE FIM DE SEMANA

Nos dias que correm, a última coisa de que apetece falar é de aborto. Não deixa de ser estranha esta obsessão permanente com um problema que apenas afecta um escasso número de mulheres e de famílias. Não que pretenda negar a dimensão do problema, ou que pretenda reduzir a sua importância só por não estarem em causa “todas” as mulheres: o problema é sério, e envolve questões delicadas que merecem ser resolvidas. O que me espanta é que, numa altura em que quase todas as famílias vêm o seu poder de compra a diminuir de forma preocupante, em que o desemprego aumenta, em que se percebe que o problema das listas de espera nos hospitais públicos não se resolveu e em que o Estado canaliza os seus recursos para projectos faraónicos, a esquerda tenha transformado a liberalização do aborto em grande desígnio nacional.
Por ser assim, vale tudo: vale usar o aborto como arma de arremesso contra a direita na tentativa de unir a esquerda, vale alterar a lei do referendo à medida duma obscura conveniência eleitoral, vale ultrapassar as regras da Constituição, enfim, vale o que for preciso.
Há muito que me apetece partilhar as minhas irritações com o argumentário da esquerda radical (por onde andará a outra?) e com o da direita beata e fundamentalista. Mas o meu espírito jurídico sobrepõe-se por vezes ao meu espírito liberal – confissão que decerto me habilitará a ser definitivamente votada ao ostracismo pelos puristas da doutrina, mas paciência – e esta é uma dessas vezes. Num Estado de Direito Democrático, as regras são para cumprir, e a Constituição, mesmo que herdada do PREC, não é para brincar.
Deixo assim para depois – não me faltará tempo, já que a novela do referendo, como se verá, está para durar – o relato das minhas impressões sobre a substância do problema. Hoje, dedico-me à forma:
1 - A Assembleia da República, nesta sessão legislativa e no uso das suas competências, iniciou um processo referendário, aprovou a pergunta a formular aos portugueses e apresentou a respectiva proposta ao Presidente da República. Este, por sua vez, também no uso dos seus poderes, recusou a referida proposta.
2 – Simultaneamente, e não obstante a decisão de consultar os eleitores sobre a matéria, a Assembleia da República iniciou um processo legislativo que visa a descriminalização do aborto e sua liberalização da sua prática até um número determinado de semanas.
3 – Duas notas há a salientar a propósito: por um lado, e ao invés do que por aí tenho ouvido dizer, em parte alguma da lei se determina que um processo referendário seja acompanhado de um processo legislativo em curso: pelo contrário, isso viola o espírito dos referendos, transformando-os em verdadeiros plebiscitos à vontade da Assembleia da República; por outro lado, o mínimo que se exige, caso ambos coexistam temporalmente, é que sejam coincidentes os sentidos de um e de outro: convém lembrar que a pergunta do referendo, caso fosse aprovada, apenas permitiria a descriminalização do aborto até às 10 semanas, enquanto o projecto de lei aprovado na Assembleia prevê a sua liberalização até às 16 semanas.
4 – Entretanto, o Partido Socialista lembrou-se, não obstante a recusa do Presidente da República, de arranjar forma de tornar viável o referendo ainda este ano civil, promessa que o Eng. Sócrates fez ao país.
5 - Sucede que, se tal calendário é manifestamente impossível – mesmo com a alteração que hoje se pretendeu efectuar à lei do referendo – ele também é manifestamente inconstitucional. De acordo com o n.º 10 do art. 115º da CRP, as propostas de referendo recusadas pelo Presidente da Republica só podem voltar a ser apresentadas na sessão legislativa seguinte. Ora, ao contrário do que pretende o Partido Socialista, hoje não se encerrou qualquer sessão legislativa: uma vez que cada legislatura apenas pode ter 4 sessões, e que, nos termos do n.º 2 do art. 171º da CRP, em caso de dissolução do Parlamento, a legislatura tem a duração de 4 anos acrescidos inicialmente do tempo que faltava para completar a sessão em curso à data da tomada de posse da nova Assembleia, é claro que a sessão que se iniciou a 10 de Março de 2005 só terminará em Julho de 2006. De outra forma, ou teríamos 5 sessões legislativas (o que a Constituição veda de forma indiscutível) ou a 4º sessão legislativa duraria de Setembro de 2007 a Outubro de 2009 (o que, além de absurdo, evidentemente contraria o disposto naquele n.º 2 do art. 171º da CRP).
6 – Temos pois, para conclusão intercalar, que à luz da CRP – como de resto, certamente o Tribunal Constitucional terá oportunidade de esclarecer – qualquer tentativa de referendar o aborto antes do Outono de 2007 será um fracasso.
7 – Acresce que a lei do referendo é uma Lei Orgânica, o que significa que só pode ser alterada com mais de 2/3 dos votos dos deputados em efectividade de funções. É um facto que hoje se votou a alteração apenas na generalidade. Mas não resisto a perguntar como será que o Partido Socialista se prepara para comprar os votos que lhe faltam, na votação final global, para conseguir esta alteração “a la carte”.
8 – No meio deste complexo emaranhado de normas, parece que o CDS conseguiu demonstrar que, mesmo que as violações à CRP não fossem grosseiras, o referendo, para se fazer este ano, tinha de se fazer no dia de Natal…

Posto isto, tenho uma dúvida: se não houver referendo, quem é que o Partido Socialista vai culpar desta vez? Ou será que, afinal, o Partido Socialista só vai levar a sério a consulta quando tiver a certeza de que ganha? Por mim, pode ser já. Já não quero saber do resto, fui vencida pelo cansaço…e pelo enjoo.
-FCP-